Genialidade e a memória muscular
A genialidade surge quando liberamos espaço mental para enxergar além do óbvio. Pessoas excepcionais não acertam apenas o alvo visível, mas aquele que ninguém percebeu.
Recentemente, comecei a ensinar meu filho a andar de bicicleta. Para ele, essa atividade exige um nível altíssimo de concentração. Ele permanece em silêncio, focado na posição dos pés, dos braços, no equilíbrio, no freio e no ambiente ao redor. Já eu, com meus 41 anos, automatizei todos esses processos. Isso me permite perceber detalhes que ele ainda não consegue notar, como o tempo fechando e a chuva se formando, um grupo de idosos saindo da igreja e ocupando a praça onde estamos, o que nos obriga a interromper a brincadeira, ou até mesmo um vira-lata caramelo correndo em nossa direção.
Percebo que as pessoas consideradas geniais em uma área do conhecimento geralmente se destacam porque, em vez de acertarem o alvo que todos miram, conseguem atingir aquele que ninguém viu. Elas fazem o que a maioria não consegue.
Um conceito fundamental para entender isso é a working memory, ou memória de trabalho, que a grosso modo representa nossa capacidade de focar em informações enquanto realizamos uma tarefa.
Quando realizamos uma atividade, nosso foco se volta para seus desafios e exigências. No entanto, algumas tarefas, com a repetição, tornam-se automáticas, deixando de demandar nossa atenção consciente.
Essa diferença ilustra por que a prática é essencial em qualquer profissão. Quando automatizamos tarefas do dia a dia, liberamos espaço mental para focar nos detalhes — e detalhes fazem toda a diferença.
Nos esportes, por exemplo, os treinos repetitivos são fundamentais. No futebol, as grandes estrelas fazem jogadas espetaculares porque já possuem uma memória muscular que as coloca automaticamente na melhor posição em campo. Assim, quando surge um lance inédito, podem dedicar sua atenção total aos detalhes da execução, sem precisar se preocupar com fundamentos, como dominar uma bola que chega a meia altura — algo que já treinaram milhares de vezes e sabem fazer de olhos fechados.
A música é outro exemplo claro desse processo em ação. Músicos desenvolvem suas habilidades por meio da repetição, praticando por longos períodos até que tocar se torne algo natural. Chega um ponto em que não precisam mais pensar para executar uma nota — apenas leem a partitura e tocam de forma automática. Isso libera espaço para o improviso, para sentir a plateia e perceber os detalhes e reações ao redor.
Voltando ao meu pupilo, durante as "aulas", com uma expressão de desamparo, ele soltou a clássica frase:
Papai, é muito difícil... Acho que nunca vou conseguir andar que nem você.
Naquele momento, expliquei que essa comparação era injusta. Afinal, eu já andava de bicicleta há muitos anos, enquanto, na idade dele, nem sequer sabia pedalar — fui aprender um pouco mais tarde. Ao ouvir isso, vi um brilho de esperança nos olhos dele, que o motivou a continuar praticando por mais meia hora. No fim, voltamos para casa com ele radiante de alegria.
Depois desse episódio, fiquei refletindo sobre como, muitas vezes, fazemos comparações da forma errada. Às vezes, erramos na percepção de valor, comparando habilidades semelhantes entre pessoas em estágios completamente diferentes. Outras vezes, erramos no posicionamento, nos colocando em um contexto onde nossos pontos fortes perdem relevância, enquanto as qualidades de outras pessoas brilham naturalmente naquele ambiente.
Eventualmente, temos a sorte de encontramos pessoas geniais, capazes de enxergar o que ainda não percebemos. Isso acontece porque, muito provavelmente, elas já automatizaram processos que, para nós, ainda são lentos e exigem atenção e esforço. Ao longo da minha vida, tive tanto o prazer quanto o desprazer de conhecer algumas dessas pessoas — afinal, nem sempre as qualidades dos outros refletem apenas coisas boas.
Você consegue identificar quais tarefas já realiza de forma automática no seu trabalho? Ou ainda, o que faria uma grande diferença se pudesse automatizar? Quem você conhece que já faz isso com maestria?
No meu caso, tenho algumas referências de pessoas das quais me inspiro para aprender a otimizar o processo de aquisição de conhecimento, uma tarefa essencial na minha profissão. Para mim, esse é um desafio quando envolve comportamento humano. Já quando se trata de tecnologia, a absorção do conhecimento acontece de forma muito mais natural.
Penso que, seja na vida, no trabalho ou nos momentos de lazer, a genialidade é fruto da repetição e do refinamento contínuo. O que hoje parece impossível pode, com tempo e prática, tornar-se algo natural — e, a partir daí, novos desafios e oportunidades se abrem.
Por isso, vale a reflexão: como você pode aprimorar sua própria memória de trabalho? O que pode ser automatizado para liberar espaço mental e enxergar além do óbvio? Compartilhe nos comentários sua experiência sobre esse processo de aprendizado e evolução ou marque alguém que você admira pela maestria em tornar o complexo simples.