Phronesis

Recentemente, durante uma leitura, me deparei com um termo que resgata uma sabedoria atemporal: phronesis, ou “sabedoria prática”. Originado na filosofia de Aristóteles, este termo difere-se do conhecimento teórico (episteme) e da habilidade técnica (techne), representando a capacidade de tomar decisões sensatas e éticas em situações concretas, sempre considerando o contexto maior - é o famoso "saber o que fazer".

No meu último artigo, O papel da ética na análise de dados, eu trato das questões éticas que envolvem o tratamento de dados dentro das organizações e os dilemas éticos que surgem diante dos profissionais que atuam nessa atividade.

Hoje eu quero me aprofundar um pouco mais nessa questão do "saber o que fazer". Para exemplificar a diferença entre esses tipos de conhecimento, fugirei um pouco da TI, usarei a área médica:

• Episteme seria o conhecimento científico sobre doenças, causas e tratamentos.
• Techne seria a habilidade técnica de realizar cirurgias ou aplicar tratamentos.
• Já phronesis seria a sabedoria de decidir qual tratamento é mais apropriado para um paciente específico, levando em conta fatores médicos, emocionais e éticos.

Em nosso cotidiano, phronesis aparece na forma de decisões que equilibram o que é funcional e o que é moralmente correto. Pense em um executivo que, ao tomar uma decisão estratégica, precisa considerar não apenas o impacto financeiro, mas também as implicações sociais e ambientais. Aqui, a phronesis guia esse líder a escolher o caminho mais sábio, considerando um contexto mais amplo, além da empresa.

Este conceito, embora antigo, continua extremamente relevante. Em tempos modernos, quando enfrentamos dilemas complexos e situações ambíguas, a capacidade de aplicar a phronesis se torna um diferencial indispensável. É uma virtude que combina razão, ética e experiência para transformar conhecimento em ação.

Para Aristóteles, phronesis é uma virtude essencial a vida. É através dela que indivíduos conseguem equilibrar conhecimentos teóricos e habilidades práticas com julgamento moral, aplicando o que sabem de forma sensata e adaptada às circunstâncias. Ela ultrapassa regras fixas, pois se baseia na percepção contextual e na experiência acumulada.

Aplicação na era digital

Hoje em dia, onde a tecnologia permeia praticamente todos os aspectos da vida, o conceito de phronesis adquire uma importância distinta enquanto episteme (conhecimento teórico) e techne (habilidade técnica) são frequentemente priorizados no desenvolvimento de soluções tecnológicas, é a phronesis que garante a aplicação desses recursos de forma ética e sensata.

Diversas tecnologias, mas em especial o Big Data e a IA, mudaram a nossa forma da tomar decisões. Cada vez mais os algoritmos são capazes de processar volumes massivos de dados para gerar recomendações precisas e rápidas, porém carecem do contexto moral e humano necessário para decisões verdadeiramente prudentes. Por exemplo, um sistema de IA pode sugerir uma política de demissões baseada em eficiência financeira, mas não considera o impacto emocional e social dessa decisão. É nesse ponto que entra a phronesis, orientando os humanos a complementar a análise técnica com juízo ético.

Não sejamos inocentes, empresas precisam dar lucro. Muitas vezes ações radicais precisam ser tomadas, como, por exemplo, demissões. Porém há formas de serem feitas e essa sabedoria deve nos guiar a não chegarmos nesse ponto, ou ao menos, ter um mínimo de impacto.

Na prática

Um exemplo da aplicação de phronesis na era digital pode ser encontrado no uso da IA na área da saúde. Um sistema avançado pode identificar tratamentos baseados em dados clínicos, mas cabe ao médico, com sua experiência e sabedoria prática, decidir qual abordagem é mais adequada para um paciente específico.

Outro exemplo está no campo da privacidade de dados. Empresas que coletam informações de usuários frequentemente enfrentam dilemas éticos sobre até onde podem ir no uso desses dados. A phronesis é essencial para equilibrar as vantagens comerciais com o respeito aos direitos dos indivíduos.

Desafios e oportunidades

Embora o conceito de phronesis seja altamente relevante, ele enfrenta desafios significativos no mundo digital. A velocidade das inovações tecnológicas frequentemente ultrapassa nossa capacidade de reflexão ética. Além disso, há uma tendência de supervalorizar soluções baseadas em algoritmos, desconsiderando a complexidade das situações humanas. O resultado pode ser a adoção de decisões que, embora eficientes, falhem em atender às necessidades mais amplas da sociedade.

Por outro lado, a era digital também oferece oportunidades únicas para o seu desenvolvimento. O acesso a dados e informações pode enriquecer o julgamento humano quando usado de forma criteriosa. Ferramentas tecnológicas, como simulações e análises preditivas, podem ajudar a explorar cenários complexos, fornecendo insights valiosos para decisões prudentes. A chave é combinar o poder das tecnologias com a sensibilidade e a experiência humana, tornando-se um pilar central no desenvolvimento de soluções tecnológicas e uma ponte entre a eficiência técnica e o bem-estar humano, lembrando-nos de que a sabedoria prática é tão necessária hoje quanto era na época de Aristóteles.

Phronesis no exercício da liderança

A phronesis não é apenas uma virtude individual, ela é uma habilidade crucial para líderes que enfrentam cenários complexos e decisões de alto impacto, onde dilemas éticos e estratégicos são comuns, a capacidade de equilibrar conhecimento técnico, experiência e julgamento moral define o sucesso de uma liderança.

Enquanto competências técnicas e analíticas são essenciais para resolver problemas específicos, a phronesis dá a líderes a capacidade de considerar contextos mais amplos, incluindo as consequências a longo prazo de suas ações. Por exemplo, um CEO pode precisar decidir entre cortar custos via demissões ou investir em soluções de requalificação para sua equipe. A phronesis guia esse líder a analisar não apenas o impacto financeiro imediato, mas também o efeito sobre a moral dos funcionários, a reputação da empresa e a sustentabilidade futura.

Como Aristóteles descreveu, a phronesis é uma forma de sabedoria que depende da experiência prática, e para os líderes modernos, isso significa aprender com erros, observar o ambiente em que atuam e adaptar suas ações às necessidades do momento. Essa capacidade de ajustar o rumo, sem comprometer princípios éticos, é o que diferencia líderes reativos de líderes visionários.

As crises são o teste definitivo para a phronesis. Em situações de alta pressão, líderes precisam tomar decisões rapidamente, mas sem negligenciar os impactos humanos e sociais. A pandemia de COVID-19 revelou a importância da phronesis em diversos contextos, desde o planejamento de respostas governamentais até a adaptação de modelos de negócios para preservar empregos e atender às necessidades da comunidade.

Cultivando phronesis

A phronesis, não é um dom inato, mas uma virtude que pode ser cultivada e aprimorada ao longo do tempo. Desenvolvê-la exige prática constante, reflexão crítica e uma disposição para equilibrar o conhecimento técnico com a sensibilidade ética. No mundo contemporâneo, onde decisões rápidas e complexas são frequentes, incorporar phronesis ao cotidiano pode ser uma ferramenta poderosa para enfrentar desafios com prudência e eficácia. Líderes e profissionais que desejam desenvolver phronesis podem adotar práticas como:

• Reflexão contínua: reservar tempo para avaliar decisões passadas e aprender com as consequências.
• Mentoria e aprendizado coletivo: buscar orientação de colegas mais experientes e criar ambientes onde diferentes perspectivas possam enriquecer o julgamento.
• Empatia ativa: priorizar o entendimento das necessidades e preocupações das pessoas impactadas por suas decisões.

Mas como incorporar essas práticas numa rotina complexa como a dos profissionais dos nossos tempos? Essa tarefa exige mais que atenção, é uma atividade que precisa de intenção, portanto, vamos refletir sobre como fazer isso do jeito certo.

Reflexão e experiência como alicerces

Como vimos a phronesis nasce da experiência, mas é através da reflexão que ela se consolida. Dedicar tempo para avaliar decisões passadas, entender seus resultados e considerar o que poderia ser feito de forma diferente é uma das maneiras para transformar experiências em sabedoria. Práticas como estudo de ROI, auditorias externas, benchmarks e demais práticas de gestão para revisão de atividades nos ajudam nessa tarefa.

Exemplo prático: Após concluir um projeto no trabalho, reserve um momento para revisar não apenas os resultados técnicos, mas também os impactos humanos, éticos e sociais. Pergunte-se: “Como esta decisão afetou as pessoas envolvidas? Que lições posso levar adiante? Onde acertamos e por quê? Onde erramos, por que e como não erraremos novamente?”

Ética e empatia no centro das decisões

Decisões orientadas pela phronesis consideram não apenas o que é eficiente ou tecnicamente correto, mas também o que é moralmente justo. Cultivar empatia ativa – ou seja, colocar-se no lugar dos outros – é uma habilidade-chave nesse processo.

Em situações de conflito ou escolha difícil, procure ouvir ativamente as perspectivas das partes envolvidas e pergunte a si mesmo: “Se eu estivesse no lugar dessa pessoa, como gostaria de ser tratado?”.

Colocar-se no lugar de outro ser humano é uma tarefa extremamente difícil, pois é praticamente impossível nos colocarmos na pele do outro. Muitas vezes conseguimos nos imaginar na posição da pessoa, pensar o que faríamos no lugar dela, mas é muito difícil enxergar as coisas da forma que ela enxerga, ver por meio dos seus medos, preconceitos e paradigmas.

Equilíbrio entre intuição e análise

Embora a intuição desempenhe um papel importante na phronesis, ela deve ser balanceada com análise racional. Ela exige que decisões sejam baseadas em dados e fatos, mas que também respeitem a complexidade das situações humanas.

Exemplo prático: Antes de adotar uma solução recomendada por um algoritmo ou sistema, questione suas premissas e considere se elas refletem o contexto completo. Combine insights quantitativos com o julgamento qualitativo.

Aprendizado contínuo e exposição a diversidade

Uma das maneiras de aprimorarmos nosso repertório é pela exposição a novos contextos e ideias. Buscar aprendizado contínuo, interagir com pessoas de diferentes origens e enfrentar situações desafiadoras ajudam a expandir o entendimento e a capacidade de julgamento.

Portanto, invista em atividades que desafiem sua zona de conforto, como cursos interdisciplinares, viagens culturais ou projetos em áreas desconhecidas.

Integrar a phronesis ao dia a dia requer intencionalidade. Pequenos passos, como priorizar diálogos construtivos, adotar uma mentalidade de aprendizado, o tão falado "growth mindset" e fazer perguntas difíceis sobre as implicações de suas escolhas, ajudam a transformar essa virtude em uma prática habitual.

Ao longo do tempo, ela deixa de ser apenas um ideal e se torna uma bússola para decisões equilibradas, alinhando eficiência, ética e humanidade. Como vimos, em um mundo repleto de dilemas complexos, "saber o que fazer" não é apenas desejável, é indispensável.

Conclusão

A phronesis, ou sabedoria prática, é um conceito atemporal e assim sendo, encontra novas e poderosas aplicações no mundo contemporâneo. Em um cenário repleto de avanços tecnológicos, dilemas éticos e decisões complexas, essa virtude nos lembra da importância de equilibrar conhecimento técnico, experiência e empatia para agir de maneira prudente e responsável.

Seja na liderança, na tomada de decisões cotidianas ou na busca por soluções para desafios globais, ela nos convida a olhar além do imediato e considerar o impacto mais amplo de nossas escolhas. Ao cultivá-la, nos tornamos melhores profissionais e seres humanos, capazes de contribuir para um mundo mais equilibrado e justo.

E você, como tem exercitado a sua phronesis? Compartilhe suas reflexões nos comentários, quero ouvir a sua opinião!