Por que a IA alucina?
A IA realmente “alucina”? Nem tanto. O que chamamos de erro é, na maioria das vezes, resultado de más instruções, bases de dados frágeis e ruídos de comunicação. Entenda o que está por trás das respostas incoerentes
Na última semana estive no FebrabanTech e, olha... se teve uma pergunta que me fizeram repetidamente foi essa: Por que a IA alucina?
Foram pelo menos quatro vezes por dia, nos três dias em que estive por lá. Achei que essa explicação já estivesse meio que pacificada — e, para o público técnico, realmente está.
Mas o que percebi ali foi outra coisa: mesmo quem trabalha com IA ainda encontra dificuldade na hora de traduzir isso pra quem não é da área. E aí nasce a confusão.
Vamos direto ao ponto: A IA não alucina.
O que acontece, na maioria das vezes, é um problema de comunicação. E não só entre humanos e máquinas — a gente vive esse tipo de ruído até nas conversas entre pessoas, não é?
Quando você faz uma pergunta pra IA e ela te dá uma resposta totalmente errada (ou que foge muito do que você esperava), a sensação imediata é de que “alucinou”. Afinal, foi esse o termo que a comunidade técnica adotou pra descrever esse comportamento — mesmo que ele não seja 100% preciso.
Apesar de chamarmos de "alucinação", a IA não está ‘vendo coisas que não existem’ como um ser humano em delírio. O termo é apenas um apelido para quando ela dá respostas erradas com muita confiança, e acabou pegando mesmo para o público leigo.
Mas o que acontece, de fato?
Quando um modelo de linguagem devolve uma resposta incoerente, essa incoerência não vem de má intenção ou falta de inteligência — ela vem da forma como o sistema foi alimentado pra responder.
Nós julgamos a resposta com base na pergunta que fizemos, mas a IA constrói a resposta com base nos dados que recebeu, não só na sua pergunta.
E é aí que entra uma arquitetura que muitos sistemas usam: o tal do RAG (Retrieval-Augmented Generation). Se quiser se aprofundar, escrevi um artigo só sobre isso: Como criar um copiloto usando IA – RAG.
Pra resumir: quando você faz uma pergunta, o sistema não envia essa pergunta diretamente pra IA. Antes, ele faz uma busca em um banco de dados, tentando encontrar os conteúdos mais relevantes sobre o tema.
Depois disso, a pergunta e os dados encontrados são enviados juntos para o modelo gerar uma resposta.
Parece simples, né? E é. Mas tem um detalhe importante:
Se essa base de dados estiver bagunçada, incompleta ou mal indexada, a IA vai receber informações ruins.
Isso acontece muito em empresas que treinam seus copilotos com bases internas mal estruturadas, ou quando o sistema depende de fontes públicas que nem sempre são confiáveis ou atualizadas.
E o resultado? Uma resposta que não faz sentido.
É o famoso: entra lixo, sai lixo.
Vejamos alguns exemplos:
Exemplo 1: contexto jurídico mal interpretado
Pergunta do usuário:
“Quais são os direitos trabalhistas de um estagiário no Brasil?”
Resposta da IA (alucinada):
Estagiários têm direito a 13º salário, férias remuneradas e FGTS, assim como os demais funcionários contratados sob CLT.
Itens que embasaram a resposta:
- Documentos da base com explicações genéricas sobre a CLT, sem diferenciar estagiários de empregados formais.
- Artigos de blogs jurídicos mal categorizados ou desatualizados.
- Falta de fontes específicas sobre a Lei do Estágio.
Resposta correta:
Estagiários não têm os mesmos direitos de trabalhadores contratados pela CLT. A Lei do Estágio (Lei nº 11.788/2008) define que estagiários têm direito a bolsa-auxílio, recesso remunerado proporcional e auxílio-transporte — mas não a FGTS, 13º salário ou férias com 1/3 adicional.
Itens que embasaram a resposta correta:
- Texto da Lei nº 11.788/2008 (Lei do Estágio).
- Sites institucionais como gov.br e MPT (Ministério Público do Trabalho).
- Artigos de juristas especializados em direito educacional ou estágio.
Por que esse erro aconteceu?
A IA não decidiu “inventar direitos” para estagiários por má vontade. O problema começou na origem: a base de dados usada para alimentar o modelo tinha documentos genéricos sobre a CLT, sem distinção clara entre categorias de trabalhadores.
Além disso, faltavam fontes específicas sobre a Lei do Estágio, e havia conteúdos mal categorizados (como blogs jurídicos misturando conceitos ou textos desatualizados). Portanto, o modelo costurou o que tinha em mãos e entregou uma resposta que, apesar de soar confiante, era juridicamente incorreta.
Exemplo 2: erro em contexto histórico
Pergunta do usuário:
“Quem foi o presidente do Brasil durante o Plano Real?”
Resposta da IA (alucinada):
Fernando Henrique Cardoso era o presidente do Brasil quando o Plano Real foi implementado.
Itens que embasaram a resposta:
- Textos mencionando FHC como um dos criadores do Plano Real.
- Conteúdos que tratam da implementação e consolidação do plano durante o governo FHC, mas sem destacar as datas corretamente.
- Falta de contexto histórico ou cronológico.
Resposta correta:
O presidente do Brasil durante a implementação do Plano Real foi Itamar Franco, em 1994. Fernando Henrique Cardoso era Ministro da Fazenda na época e liderou a criação do plano, mas só se tornou presidente em 1995.
Itens que embasaram a resposta correta:
- Fontes históricas confiáveis, como livros de história contemporânea brasileira.
- Publicações oficiais do Governo Federal.
- Documentos e reportagens de 1994/1995 com cronologia política.
Por que esse erro aconteceu?
O problema aqui foi uma mistura clássica de erro cronológico + excesso de confiança.
Ao receber a pergunta, o sistema buscou por termos como “Plano Real”, “presidente” e “FHC” e encontrou toneladas de documentos que falavam de Fernando Henrique Cardoso como figura central no Plano Real — o que é verdade... mas num contexto diferente (como Ministro da Fazenda).
A falta de um bom filtro temporal e a carência de fontes que separassem claramente os eventos de 1994 (implementação) e 1995 (início do governo FHC) fizeram o modelo colar informações de períodos diferentes e gerar uma resposta anacrônica.
Exemplo 3: erro em contexto comercial (telecomunicações)
Pergunta do usuário:
"Quais são os planos ilimitados com internet e chamadas grátis?"
Resposta da IA (alucinada):
"Atualmente oferecemos o Plano UltraMax, com internet ilimitada, ligações ilimitadas para qualquer operadora e roaming internacional gratuito, válido em todo o Mercosul."
Itens que embasaram a resposta:
- Documentos internos contendo campanhas promocionais antigas (expiradas desde 2022).
- PDFs de planos corporativos com benefícios específicos que não se aplicam ao público residencial.
- Artigos de blog da própria empresa com títulos chamativos como "Plano ilimitado para todos os momentos", mas com pouca informação técnica ou jurídica.
- Falta de filtros de data ou de versão de documentos na base indexada.
Resposta correta:
"Atualmente, os planos disponíveis com internet e chamadas nacionais ilimitadas são o Plano Conecta+ e o Plano Infinity Voz e Dados. O roaming internacional não está incluído, exceto se contratado como pacote adicional. Consulte os termos atualizados no site oficial."
Itens que embasaram a resposta correta:
- Página oficial de planos vigente no site da operadora.
- Documentação de oferta atual, com datas de validade e regras contratuais claras.
- Base de dados interna com controle de versões e flag de campanhas expiradas.
Por que o erro aconteceu?
A IA não inventou o plano do nada. Ela apenas combinou fragmentos de textos promocionais antigos, PDFs de planos corporativos e conteúdos mal categorizados na base de dados. Sem filtros por data, por público-alvo ou por vigência, o modelo fez o que foi possível com o lixo que recebeu.
Pergunta ambígua + base bagunçada = IA com crise de identidade comercial.
Ou como diz o ditado técnico:
"Se você perguntar de qualquer jeito, a IA vai responder de qualquer jeito."
No fim das contas, o problema não está na IA “alucinar” — está em como ela é alimentada, configurada e, principalmente, em como traduzimos tudo isso para o mundo real.
É fácil culpar a IA quando ela erra. Mais difícil — e necessário — é entender o que está por trás desses erros. Porque a IA só é tão boa quanto o contexto que damos a ela. E esse contexto, muitas vezes, é frágil: bases desatualizadas, buscas mal feitas ou perguntas confusas.
Por isso, se queremos resultados mais confiáveis, precisamos ir além da pergunta. Precisamos olhar para o sistema todo — do repositório de dados ao mecanismo de busca, da arquitetura ao modelo.
E, claro, investir cada vez mais em educação sobre IA para todos os públicos.
A boa notícia? Isso é possível. A má? Dá trabalho.
Entender esse processo é um dos passos para construir soluções mais inteligentes — e para evitar que, no futuro, a IA continue sendo acusada de um erro que, na maioria das vezes, é humano.
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