Sobre dar e receber
Entre dar e receber existe uma delicada arte. A generosidade respeita a dignidade de quem recebe. Às vezes, grandes favores geram ingratidão não por maldade, mas pelo desconforto de quem não consegue retribuir.
Inspirado pelo espírito da páscoa, hoje começo meu artigo com uma frase do romancista e dramaturgo francês Alexandre Dumas:
“Há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão.”
Duro, né? Mas já parou pra pensar como isso acontece mais vezes do que gostaríamos de admitir?
Você já passou por situações onde as pessoas que você ajuda não reconhecem isso, ou pior, tem raiva de você? Eu já abordei esse assunto algumas vezes em conversas com amigos próximos, mas hoje eu quero compartilhar uma história com vocês...
Há muito tempo eu ajudava em um projeto comunitário de tecnologia numa pequena sala de informática cedida por uma escola. Um sábado por mês, um colega mais experiente dedicava seu dia para ensinar adolescentes da periferia os fundamentos da programação de computadores.
O projeto era uma iniciativa modesta, mas importante. Ele conseguia, com recursos próprios e algumas doações, manter uma pequena sala com dez computadores funcionando. Acreditava sinceramente que o conhecimento em programação poderia abrir portas para aqueles jovens, criar oportunidades que talvez nunca tivessem de outra forma.
Eu admirava seu empenho, via como ele passava noites preparando materiais didáticos, adaptando tutoriais complexos para uma linguagem mais acessível, e como sempre chegava com um sorriso, não importava quão cansado estivesse de seu trabalho regular durante a semana.
No entanto, algo me perturbava muito: o aparente desinteresse de muitos dos participantes. Em vez de prestarem atenção às aulas de programação, os adolescentes frequentemente ficavam jogando, navegando na internet, no Orkut (faz tempo isso) e alguns sequer tentavam disfarçar, mantendo os fones de ouvido e ignorando completamente a explicação sobre variáveis e funções que aconteciam à sua frente.
O que mais me intrigava era a reação dele, em vez de repreender os jovens ou impor regras rígidas, ele constantemente buscava adaptar suas aulas, tornando-as mais interativas, mais próximas da realidade daqueles adolescentes.
Ele chegava a propor desafios que chamassem a atenção dos alunos, como a criação de códigos para a resolução de problemas comuns do dia a dia, mas mesmo assim conseguia atenção de poucos.
Após uma aula particularmente difícil, quando a maioria dos alunos havia passado o tempo inteiro, online, apesar das várias tentativas dele de engajá-los com um projeto de criação de um jogo simples, eu não consegui mais conter a frustração e tive um diálogo que me lembro até hoje:
— "Por que você continua tentando? Eles claramente não estão interessados no que você tem para ensinar! Você prepara todo esse material, dedica seu tempo, e eles só querem saber de jogar e navegar na internet. Por que não cria regras mais rígidas ou simplesmente desiste daqueles que não querem aprender?"
Ele respirou fundo e pediu que me sentasse em frente a um dos computadores. Abriu duas janelas lado a lado – uma do Eclipse e outra do Final Fantasy.
— "O que você vê aqui?" — Perguntou.
— "Uma interface de programação e um jogo"
— "Um trabalho e uma distração, certo?"
— "Certo."
— "Interessante. Mas sabe o que esses jovens veem? Dois mundos completamente diferentes – um que parece distante, complexo e sem recompensas imediatas, e outro que oferece validação instantânea, um senso de conquista e, mais importante, um lugar onde eles se sentem competentes."
Ele clicou na tela do jogo, mostrando um personagem bem desenvolvido com conquistas desbloqueadas.
— "Para muitos desses adolescentes, este é um dos poucos espaços onde eles têm controle, onde suas ações produzem resultados visíveis, onde eles são reconhecidos. Na escola, em casa, no bairro, muitas vezes são vistos apenas por suas limitações. Aqui, no jogo, são heróis."
Ele então voltou para o editor de código.
— "Quando peço que troquem isso", apontou para o jogo, "por isso", indicou o código, "não estou apenas pedindo que aprendam algo novo. Estou pedindo que abandonem um lugar onde se sentem poderosos por outro onde, inicialmente, se sentem incompetentes."
Nesse momento passei a compreender.
— "Quando eles resistem, quando parecem desinteressados, quando insistem em voltar aos jogos, não é necessariamente preguiça ou ingratidão. É uma forma de preservar sua autoestima, de não trocar um espaço onde se sentem capazes por outro onde temem fracassar. Especialmente quando não escolheram estar aqui - muitos vêm porque os pais obrigam ou porque é o único lugar com computadores disponíveis."
— "Mas como ensinar alguém que não quer aprender?", questionei.
— "A questão não é fazê-los querer aprender programação imediatamente, mas sim construir um portal entre os dois mundos", explicou. "Por isso tento incorporar elementos dos jogos nas aulas, mostrar como a programação pode melhorar a experiência deles com as coisas que já gostam. Não é sobre proibir jogos ou forçar o código, mas criar um caminho gradual entre o que já conhecem e o novo conhecimento."
Ele abriu um arquivo de projeto diferente, mostrando um jogo simples que ele próprio havia programado.
— "Quando um jovem percebe que pode não apenas jogar, mas criar seus próprios jogos, algo muda. A relação com o conhecimento se transforma. Mas isso só acontece quando respeitamos o ponto de partida deles, quando não os fazemos sentir que seus interesses atuais são menos válidos."
Quando estávamos organizando a sala no final daquele dia, ele ainda fez uma observação final:
— "Você já reparou como alguns dos que parecem mais desinteressados no início do curso são justamente os que ficam depois da aula pra perguntar como se faz algo específico? É porque finalmente encontraram um ponto de conexão pessoal com o conhecimento, algo que faz sentido no mundo deles. E isso só acontece quando se sentam para aprender não por obrigação, mas porque descobriram por si mesmos o valor daquilo."
Após diversos anos trabalhando e lidando com pessoas, entendi de fato a lição que ele me passou naquele dia, ele me revelou que a caridade não está apenas em dar, mas em criar elos que respeitem a dignidade e os interesses prévios de quem recebe.
Descobri que a resistência inicial muitas vezes não é uma rejeição em si, mas um sentimento de inadequação que vem com ser colocado em uma posição inferior, mesmo que inexistente.
Para que as trocas sejam justas, é importante ter cuidado, para ajudar, mais cuidado ainda e para doar, é essencial ter uma atitude de diplomacia.
Se a gente exagera na hora de doar ou tirar, pode acabar desequilibrando a balança, e aí, muitas vezes, o outro lado só encontra como saída falar mal de você ou sentir uma raiva que aparece sem explicação.
Eu fui síndico por 6 anos, em dois condomínios diferentes. Isso me trouxe muito aprendizado sobre diversas coisas, e um deles é que lidar com gente é mais complicado do que parece. Eu tenho diversas histórias desse período, mas vou contar uma que tem a ver com isso:
Era um sábado a tarde, e como de costume, o salão de festas estava reservado para um evento. O organizador, um morador que sempre utilizava o espaço, chegou um antes para começar a preparação. Ao entrar, percebeu que o salão estava sujo, com algumas cadeiras fora do lugar e lixo a recolher.
Frustrado e cheio de si, ele me procurou e perguntou:
— “Por que o salão está assim? Isso é uma total falta de respeito! Nós reservamos com antecedência, isso é um absurdo, a faxineira já foi embora, agora tenho que limpar tudo. Eu não vou pagar por isso.”
Eu respondi calmamente:
— “Quando você pegou as chaves e fez a vistoria, ele estava assim?”
— “Não. Estava arrumado e limpo.”
— “Você deixou as chaves com alguém ou usou o salão?”
— “Emprestei para o morador do ##. Mas a faxina deveria ter sido feita!”
— “Tá de sacanagem né? Vocês acham que o pessoal tem bola de cristal pra adivinhar que haverá duas festas? Aliás, isso é proibido pelo regulamento. Mas vou te ajudar! Você pode escolher pagar o aluguel de uma reserva pela primeira festa e me devolver as chaves ou pagar o aluguel de duas reservas e fazer a sua.”
Moral da história: às vezes, o que você recebe é proporcional ao que oferece.
Claro, nem sempre é assim. No projeto, por exemplo, doávamos tempo e ouvíamos críticas: “o computador é lento”, “o mouse trava”, “meu filho não aprende porque a didática é ruim”, e por aí vai. Era uma minoria, mas acontecia.
Também aprendi que corrigir alguém raramente funciona. Exige inteligência emocional e disposição para escutar. Do contrário, a pessoa se sente atacada e a conversa vira conflito.
Salomão já dizia:
“Não repreenda o zombador, senão ele te odiará; repreenda o sábio, e ele te amará.”
E faz total sentido! Uma pessoa sábia e aberta, pelo menos vai te escutar e, se você estiver certo, irá até te agradecer. Só que chega um ponto onde, para manter sua paz, você tem que parar de gastar energia.
Não dá para forçar alguém a crescer, cada um tem o seu momento. E na minha visão, é uma forma de amor deixar as pessoas errarem e não forçar a sua realidade nelas.
Eu achava que sabia o que era caridade, mas só fui realmente internalizar essa lição anos depois, quando me vi do outro lado — no papel de quem precisava receber.
Foi numa fase difícil da minha vida, em que, por mais que eu quisesse, não tinha nada para oferecer em troca da ajuda que me foi dada.
Nem dinheiro, nem tempo, nem sequer energia. E, mesmo assim, fui acolhido com generosidade. Aquilo me constrangeu de um jeito diferente, profundo. Foi ali que percebi como é delicado o ato de receber — e como, às vezes, aceitar ajuda exige ainda mais coragem e humildade do que oferecê-la.
Doar é uma arte. Receber é confiar. E entre os dois, existe uma ponte que se constrói com coragem, respeito, escuta e tempo.
Ao refletir sobre tudo que compartilhei, volto à frase de Alexandre Dumas que abriu este artigo:
"Há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão."
Esta verdade encontra sua expressão mais profunda na história que inspira nossa celebração da Páscoa. Jesus Cristo, que ofereceu o maior de todos os presentes – amor incondicional, perdão e salvação – foi recompensado com uma das mais dolorosas formas de ingratidão: a traição de Judas, alguém de seu círculo íntimo.
Judas recebeu de Jesus confiança, ensinamentos e a honra de ser um dos doze. Mas diante dessa grandiosidade – ser escolhido como discípulo – talvez tenha se sentido pequeno demais, indigno demais.
A ingratidão, manifestada na traição por trinta moedas de prata, pode ter sido sua tentativa desesperada de recuperar algum controle, algo similar ao que discuti aqui.
O que torna essa história ainda mais extraordinária não é apenas a traição em si, mas a resposta de Jesus a ela. Mesmo sabendo que seria traído, continuou oferecendo. Mesmo ciente da ingratidão futura, não retirou seu favor. Pelo contrário, no momento mais crítico, ofereceu ainda mais: seu corpo e seu sangue simbolizados no pão e no vinho, seu perdão até mesmo para aqueles que o crucificavam.
Nisso está a lição mais profunda sobre dar e receber. Às vezes, a ingratidão que enfrentamos é proporcional à grandeza do que oferecemos – não porque o outro seja intrinsecamente mal ou ingrato, mas porque receber algo tão grande pode despertar medo, insegurança, ou uma dolorosa consciência da própria incapacidade de retribuir à altura.
Eu acredito que devemos fugir da armadilha de evitar oferecer por medo da ingratidão, ou esperar sempre reciprocidade perfeita. Estou sempre buscando trabalhar em mim a compreensão dessa dinâmica humana tão complexa.
Como constatei em minhas experiências – seja ensinando jovens relutantes, lidando com vizinhos, ou me vendo forçado a aceitar ajuda quando nada tinha a oferecer em troca – existe uma delicada arte no dar e no receber. Uma arte que, em seus momentos mais sublimes, se aproxima do amor incondicional que celebramos nesta Páscoa.
Dumas estava certo sobre a ingratidão que frequentemente segue grandes favores. Mas sua frase captura apenas um lado dessa complexa equação. O outro lado é que, mesmo diante dessa ingratidão, continuar oferecendo – como fez meu colega com os adolescentes, como fizeram aqueles que me ajudaram quando nada tinha a dar, como fez Jesus com todos nós – é talvez o ato mais profundamente humano e divino que podemos realizar.
Doar é uma arte. Receber é confiar. E entre os dois, existe uma ponte que se constrói com coragem, respeito, escuta e tempo – uma ponte que, nos seus melhores momentos, transcende a matemática das trocas exatas e nos conecta ao mistério maior do amor incondicional.